Direito do devedor: a jurisprudência do STJ sobre ação de consignação em pagamento.
18/11/2012
- 08h00
Bancos, carnês de lojas, financeiras, cartão
de crédito: as opções que o brasileiro tem atualmente no mercado para
dispor de dinheiro e engrossar a lista de endividados no país é grande.
Dados do Banco Central revelam que, até setembro, quase 61 milhões de
pessoas tinham operações de crédito ativas em instituições financeiras. E
a expectativa do Banco Central é que os atuais clientes tomem novos
financiamentos.
O credor tem o direito de receber e o devedor
tem o dever de pagar. Porém, o inverso também é verdadeiro: o pagamento é
um direito para o devedor tanto quanto o recebimento é um dever para o
credor. Deixar de pagar significa entrar em mora, acarretando juros
sobre o valor devido e até a inscrição do nome nas listas do Serviço de
Proteção ao Crédito (SPC), do Serasa e do Banco Central, que são as
referências para o mercado na hora de avaliar a idoneidade do cliente. E
o bom pagador quer fugir dessas situações.
Há casos em que a
lei autoriza o depósito judicial, “de quantia ou coisa devida”, por meio
de ação de consignação em pagamento. O litígio sobre o objeto de
pagamento é apenas uma das hipóteses em que a consignação é admitida.
Ela serve para liberar o devedor de sua obrigação, ainda que de modo
indireto, e está prevista no Código de Processo Civil (CPC, artigo 890).
O tema já foi tratado em diversos julgamentos no Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
Trata-se do depósito judicial ou bancário do que é
devido, mecanismo que pode ser utilizado em diversas situações, não
apenas quando houver discordância sobre o valor da dívida. O artigo 335
do Código Civil de 2002 prevê que a consignação é possível, ainda,
quando o credor não for conhecido, não puder ou não tomar a iniciativa
de receber; se o credor for incapaz de receber, ou residir em local de
acesso perigoso ou difícil; ou se houver dúvida sobre quem tem
legitimidade para receber.
Adroaldo Furtado Fabrício, em Comentários ao Código de Processo Civil,
assevera que o devedor é titular de direitos. “E não somente o direito
de apenas pagar nos limites do devido e não antes do vencimento. O
devedor é juridicamente interessado na própria exoneração, porque a
permanência do débito é uma situação constrangedora e potencialmente
danosa”, explica o doutrinador. E conclui: “O direito não poderia deixar
de proteger esse interesse do devedor na própria liberação, de modo que
não há impropriedade em falar-se de um direito subjetivo à liberação”.
Parcela controvertida
Em
decisão tomada em abril de 2011, a Segunda Turma do STJ entendeu que o
credor pode levantar os valores consignados pelo devedor, sem prejuízo
do seguimento do processo quanto à parcela controvertida da dívida (REsp
1.132.662). No julgamento, a Turma rejeitou recurso da sociedade
mantenedora de um hospital no Piauí em ação contra a companhia
energética do estado (Cepisa).
A sociedade propôs ação para
revisar o contrato de fornecimento de energia elétrica. Fez, ainda, a
consignação de débitos integrais correspondentes às faturas de energia
consumida. Após a sentença, favorável à sociedade, a Cepisa apelou, mas
levantou os valores depositados. Diante disso, a sociedade questionou o
seguimento do processo. Para ela, com o ato, a Cepisa teria reconhecido
os valores como incontroversos e seu pedido como procedente.
No
entanto, o ministro Mauro Campbell Marques discordou. Disse que a
própria natureza da ação consignatória pressupõe a incontrovérsia dos
valores depositados, ao menos do ponto de vista do devedor. O relator
esclareceu que, se o credor ressalva a discordância com os valores
depositados, não há por que dar a dívida por quitada.
O artigo
899, parágrafo 1º, do CPC ainda permite que o réu na ação de consignação
levante, desde o início, a quantia depositada, mas determina o
seguimento do processo quanto aos valores controvertidos.
Mora de quem?
Em
julgamento ocorrido em junho de 2012, a Terceira Turma negou recurso da
Petrobras, que questionava a mora do devedor em razão de atraso no
pagamento de pensão por morte em favor dos pais de um trabalhador,
vítima de acidente de helicóptero em uma plataforma petrolífera (REsp
1.131.377).
A maioria da Turma, seguindo o voto do ministro
Paulo de Tarso Senseverino, entendeu que a dificuldade no pagamento, por
falta de fornecimento dos dados dos beneficiários para inclusão na
folha, não afastava a mora, uma vez que existia a possibilidade de
depósito judicial do valor devido para evitar a caracterização do
atraso.
Apenas o ministro Massami Uyeda, relator original do
recurso, afastava a mora, por entender que a propositura de ação de
consignação em pagamento, para eximir-se da obrigação, é uma faculdade
do devedor. O ministro sustentou a tese de que, na hipótese, o que havia
era “mora do credor”, devendo ser a ele transferida a responsabilidade
pelo inadimplemento.
Consignação de coisa
No
julgamento do REsp 444.128, a Primeira Turma decidiu que a Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos poderia propor ação de consignação
em pagamento, objetivando o depósito judicial de documentos sob sua
guarda provisória, bem como para extinguir a obrigação de devolvê-los,
tal como determina a Lei 8.666/93.
No caso, uma empresa do
Paraná participante de licitação obteve liminar em mandado de segurança
para ingressar na concorrência, mas, no julgamento do mérito, não teve
sucesso. No entanto, ainda que inabilitada, recusava-se,
injustificadamente, a receber de volta os documentos relativos à sua
participação.
A relatora, ministra Denise Arruda, atualmente
aposentada, asseverou em seu voto que se tratava de consignação de
coisa, prevista no artigo 890 do CPC. Disse que, embora aquele não fosse
“exemplo clássico” de ação consignatória, reunia os elementos
necessários para seu cabimento. Entre os documentos, havia uma apólice
de seguros no valor de R$ 350 mil, o que, na visão da relatora,
indicaria o “manifesto caráter econômico dos documentos e o consequente
interesse na sua devolução”.
Objeto da obrigação
Em
caso semelhante, julgado em 2006, a mesma Primeira Turma negou recurso
de devedor que pretendia utilizar a ação de consignação em pagamento
para obrigar a Fazenda Nacional a analisar documentos depositados, com a
finalidade de que fosse reconhecida eventual compensação de créditos
(REsp 708.421).
O relator, ministro Francisco Falcão, considerou
que a recusa do credor foi justa. Ainda que a lei autorize a
consignação de “coisa”, tal coisa deve ser a coisa devida, a coisa que
constitui o objeto da obrigação, não outra, afirmou. Conforme o
ministro, o credor não pode ser “obrigado a receber prestação diversa da
que lhe é devida, ainda que mais valiosa”.
Liberação de dívida fiscal
O
STJ já externou entendimento segundo o qual a ação de consignação em
pagamento é meio hábil para a liberação de dívida fiscal quando o
contribuinte pretende eximir-se do pagamento de “consectários legais”
que considera indevidos, tendo o fisco condicionado o pagamento do
tributo à satisfação desses acessórios (REsp 55.911).
O artigo
164 do Código Tributário Nacional (CTN) permite que a importância do
crédito seja consignada judicialmente pelo contribuinte nos casos de
“recusa do recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro
tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória”.
Favor fiscal
Há
pelo menos oito anos, foi firmada a orientação do STJ no sentido de que
a ação de consignação em pagamento é inadequada para forçar a concessão
de parcelamento do crédito fiscal, ou discutir a exigibilidade e a
extensão do crédito. Em matéria tributária, as hipóteses de consignação
em pagamento se restringem às previstas no artigo 164 do CTN.
Esse
entendimento foi reafirmado no julgamento do REsp 1.020.982. O relator,
ministro Mauro Campbell Marques, afirmou, citando precedentes, que a
prática é uma burla à legislação, afinal o deferimento do parcelamento
do crédito fiscal subordina-se ao cumprimento das condições legalmente
previstas.
Débito previdenciário
Da
mesma forma, a ação consignatória de pagamento não serve como
autorização para parcelamento de débito previdenciário (REsp 692.603).
Com esse entendimento, a Segunda Turma do STJ confirmou decisão do
Tribunal de Justiça gaúcho, para negar o recurso de empresa que alegava
tal direito.
A empresa pretendia depositar 1/240 da dívida
relativa à contribuição previdenciária em atraso, com o fim de parcelar o
crédito tributário. O tribunal estadual negou o pedido. No STJ, a
ministra Eliana Calmon, relatora do recurso, afirmou que a ação
consignatória é ação nitidamente declaratória, com alcance limitado à
extinção da dívida pelo pagamento em questão, “visando à liberação do
devedor, quando satisfeita a dívida em sua integralidade”.
Levantamento de valor
No
julgamento do REsp 568.552, a Primeira Turma decidiu que desistentes de
ação de consignação movida com o objetivo de pagar financiamento do
Sistema Financeiro de Habitação (SFH) não têm direito de levantar valor
depositado a menor. No caso analisado, a Caixa Econômica Federal (CEF)
conseguiu reverter decisão da segunda instânica, que havia sido
favorável aos consignantes. Eles desistiram da ação após depositar
quantia inferior à devida.
No STJ, a CEF obteve o direito de
levantar os valores depositados a menor na ação de consignação. De
acordo com o voto do relator, ministro Luiz Fux (atualmente no Supremo
Tribunal Federal), havendo desistência da ação e levantada a quantia
depositada, a quitação parcial produzirá seus efeitos no plano do
direito material (garantia do direito dos autores), enquanto, sob o
ângulo processual, a ação não poderá ser novamente proposta pelo valor
total da dívida, mas sim pelo resíduo.
No caso, houve
contestação da CEF quanto ao valor, e perícia posteriormente realizada
comprovou a insuficiência do depósito. A norma legal estabelece que,
após a alegação de insuficiência do depósito, o réu (no caso, a CEF)
pode levantar desde logo a quantia ou a coisa depositada, ou seja, antes
da apreciação da matéria de fundo (mérito) da causa. Conforme alegou a
CEF, se o réu pode levantar o montante depositado no curso da ação,
teria razão em requerer esse direito no caso de desistência.
O
ministro Fux explicou que a reforma do CPC introduziu o parágrafo 1º no
artigo 899, possibilitando o levantamento das quantias pelo consignado
(a CEF) quando alegada em contestação a insuficiência do depósito.
"Trata-se de faculdade do credor, independentemente de concordância por
parte do consignante", acrescentou o relator.
FONTE:STJ